terça-feira, março 06, 2007

A noite de Sábado por João Bonifácio


EDIÇÃO IMPRESSA


"Uma virtude chamada melancolia"

Sábado, 3 de Março, 22 horas
Cinema São Jorge, Lisboa
Esgotado

"Diz-nos a história que o caminho de um fadista é lento: não basta voz, é preciso saber escolher o reportório mais apropriado, compreender o peso de cada palavra e saber resgatá-las ao lugar onde se escondem. Isto pode implicar vivência ou técnica, mas sempre, sempre, tempo. E é exactamente tempo que falta a joana amendoeira para perceber onde quer ir. O que se tornou notório quando, no concerto do cinema são jorge de sábado, quase sempre as canções com maiores ovações foram as mais populares e corridas, no extremo oposto dos momentos em que verdadeiramente ela pode encantar.

Amendoeira tem hoje um reportório centrado no fado tradicional, com apenas ligeiras variações instrumentais e estruturais que, aliás, só a favorecem. Há nela um lado de fado popular, imediato e ligeiro que, sendo gratificante (e por vezes até refrescante), e ela, possuidora de uma voz rara, dá conta da tarefa com facilidade, subindo e descendo escalas a seu belo prazer, sem demasiados ornatos na voz, sem cair na tentação de estilar.

Mas comparemos esses momentos com um fado como O que trago e o que fazes (escrito por Hélder Moutinho), em que, mantendo como base instrumental a guitarra portuguesa, a acústica, e o baixo (ou o contra-baixo) se faz uma pequena revolução apenas pela escolha do momento em que cada instrumento é introduzido: começa-se apenas com baixo e voz, em ritmo lento e espaçado, a guitarra portuguesa pontua apenas - e assim a voz encontra o espaço para que a qualidade onírica que a enforma se possa espraiar.

Exemplo maior da mais valia que amendoeira pode obter com outra escolha de reportório foi Se eu adivinhasse que sem ti, que usa apenas guitarra acústica e voz e soa quase a música antiga. A voz de amendoeira, aí, vai ocupar os espaços deixados pelo ornamento da guitarra em vez de levar a guitarra atrás. O tema, mais próximo do registo canção que do fado, é servido por uma interpretação magistral da jovem fadista, que encontra forma de traduzir aquilo a que vulgarmente se chama sentimento.

Tal deve-se a um simples facto: a voz de amendoeira está mais próxima de maria teresa de noronha do que de amália, e tal como em noronha há no seu timbre uma qualidade transcendente. Não se lhe pode pedir que guie os instrumentos, que rasgue como um furacão, antes que encante, que ilumine. Dúvidas houvesse e Apelo, no mesmo registo dos fados descritos anteriormente, confirmam que os tempos mais lentos e o maior espaçamento entre instrumentos favorecem em definitivo o timbre claro da fadista.

À flor da pele, o disco que serviu de base a este concerto, é o quinto da fadista, que é ainda muito jovem. A forma como torna a melancolia de um fado numa virtude diz-nos que tem muito tempo para procurar com exactidão a claridade que já se vislumbra na sua voz."

João Bonifácio


Público, Caderno P2, Cultura, 6 de Março de 2007

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