domingo, janeiro 14, 2007

Entrevista a «O Primeiro de Janeiro»


Numa das nossas passagens pelo Porto tive a oportunidade de conversar com o jornalista Rui Almeida, do Jornal «O Primeiro de Janeiro». A 18 de Dezembro foi publicada esta nossa conversa que se encontra aqui transcrita.


O recente trabalho de Joana Amendoeira, «À flor da pele», junta fados tradicionais a poemas de autores contemporâneos

“Cantar a mensagem de hoje”


Joana Amendoeira descobriu o fado aos seis anos, e nunca mais parou. Com cinco discos gravados, a fadista continua fiel a uma linha mais tradicional do fado sem, no entanto, esquecer os jovens poetas. Em entrevista ao JANEIRO, a cantora falou do seu novo disco e manifestou a sua crença no futuro do fado.

«À flor da pele» apresenta maioritariamente composições dos músicos que a acompanham. Isto reflecte a vontade de criar uma linha musical homogénea?
Sim. E aconteceu de uma forma muito natural. Ao longo dos últimos dois anos, começaram a surgir estas músicas novas. Apesar de ser bastante tradicionalista e gostar de preservar músicas muito antigas, acredito que é possível apresentar músicas novas com uma matriz tradicional.

Rui Vieira Nery afirmou, a propósito do seu primeiro disco, que a sua intenção não era “fazer uma revolução”...Mesmo este disco, apesar das músicas novas, não foi feito com o intuito de originar uma revolução. Apesar de gostar muito de preservar o fado tradicional, é importante trazer novas melodias. Aliás, isso é algo que tem sido feito desde sempre, caso contrário o fado não teria evoluído. Não é uma revolução, é uma continuidade.O fado despertou na minha vida aos seis anos, e sempre ouvi os fadistas mais velhos. Depois, comecei a comprar livros, a investigar sobre a história do fado. Assim, esta paixão prende-se muito a esse lado tradicional.

No entanto, «À flor da pele» junta fados tradicionais a poemas de vários escritores. É uma forma de se afastar desse lado mais tradicional?
É possível ser-se tradicional mesmo cantando estes poetas jovens. O poema do José Luís Peixoto surge com uma música tradicional bastante antiga, mas com um arranjo novo. É difícil explicar este lado tradicional. Está na essência daquilo que nós, todos aqueles que construímos este disco, sentimos. Esse lado tradicional sente-se através da forma intensa como vivemos o fado e que é, simultaneamente, muito simples. Cantamos numa casa de fados e, por isso, estamos próximos deste ambiente mais tradicional.

Contudo, as afinidades musicais do José Luís Peixoto são bastante diferentes do fado...O José Luís já teve algumas participações com a Naifa, um projecto que espelha uma vertente de fusão com o fado. De certa forma, ele também está a descobrir a escrita para o fado. E foi muito importante ver que é possível fazer estas propostas e que os poetas têm vontade de escrever para o fado. A Amália cantou poetas contemporâneos da sua época de ouro. Agora também é possível recuperar isso, com os poetas de hoje. É importante cantar a mensagem de hoje.

A partir de 2000 iniciou uma colaboração regular com o Clube do Fado, umas das mais prestigiadas casas de fado de Lisboa, onde faz parte do elenco. São os sítios de excelência para cantar fado?Num palco, seja ele de um teatro ou de um auditório, ou até mesmo ao ar livre, é possível acontecer o fado, porque existe uma comunicação muito forte com o público. No entanto, no ambiente muito intimista de uma casa de fados, em que quase sentimos a respiração das pessoas, o olhar, a emoção passa muito mais rapidamente. A magia do fado acontece em pleno. Cada noite é uma noite diferente. Gosto muito de cantar numa casa de fados. É uma forma de expressão da qual não prescindo, apesar de estar cada vez mais a cantar em vários palcos, em diferentes países, gosto sempre de manter a minha freqüência numa casa de fados. Sempre que é possível, lá estou [risos].

No entanto, o lançamento de «À flor da pele» foi feito na Fnac do Chiado. É uma cedência a razões comerciais?É muito importante dar a conhecer esta música a cada vez mais pessoas, e a um público mais jovem, que muitas vezes está presente nesses locais, o que traz muitas vantagens. Cada vez mais os jovens estão a aderir ao fado, e até a cantar e a aprender a tocar, por exemplo, guitarra portuguesa.

Nesse sentido, considera que se vive uma espécie de “moda” do fado?Espero que não seja uma moda. Apesar de porventura existirem alguns projectos que possam ter enveredado por este caminho pelo facto de o fado estar a ser muito falado, este interesse crescente começou há cerca de dez anos atrás. Com o Paulo Bragança, o Camané… mas tem vindo a solidificar-se cada vez mais, com o surgimento de novos valores. Por isso, penso que não vai ser uma moda. Caso contrário, acabaria, e penso que isso não irá acontecer. O tempo será o verdadeiro juiz, quem permanecer não será por causa da moda.

Sente-se parte da chamada “nova geração do fado”?Embora seja jovem, já canto regularmente há 13 anos. E com certeza que sou parte da nova geração do fado. É difícil caracterizar esta nova geração, existem estilos muito diferentes, até porque cada fadista deve procurar um estilo próprio em vez de copiar alguém. Mas penso que temos uma geração de ouro no fado neste momento. E não falo por mim [risos].

A Joana Amendoeira participou, em 1994, pela primeira vez, na Grande Noite do Fado de Lisboa. No ano seguinte, ganhou o primeiro prémio de interpretação feminina, no mesmo concurso, no Porto. Que importância é que esse prémio teve no futuro da sua carreira?Nessa altura tinha 12 anos e, portanto, não estava propriamente consciente da sua importância. Mas foi um grande incentivo, fez-me sonhar e apaixonar cada vez mais por cantar, e por querer aprender e evoluir. Foi muito bom receber esse prémio.

Sendo o fado uma música que aborda sentimentos como o amor ou a saudade, não é pouco propícia a ser cantada por uma criança de 12 anos?Quando tinha 12 anos interpretava consoante a minha vivência. Sempre me aconselharam a cantar palavras que pudesse sentir de alguma forma, e não cantar fados como «Povo que lavas no rio» ou «Ai quem me dera ter outra vez vinte anos» [risos]. Sempre tive pessoas que me aconselharam, não só os meus pais, mas vários fadistas com quem me relacionei. E continuo a defender essa ideia, ou seja, que se deve cantar aquilo que se sente. As palavras que se passam às pessoas têm de ser muito verdadeiras dentro de nós. Apesar de não termos vivido histórias tristes como aquelas que cantamos, podemos imagina-las.Aos 12 anos pensava mais nas melodias do que nas palavras. À medida que fui crescendo, fui interiorizando muito mais e comecei a reparar muito mais nos poemas, e na forma como se dizem as palavras. No fado a mensagem é muito importante, e isso passa também pela maneira como dizemos os poemas. Foi, sobretudo, a partir do terceiro disco que notei mais essa maturidade no relacionamento com as palavras. Os primeiros ainda foram discos da adolescência.

Em 2004 recebeu o prémio revelação da Casa da Imprensa. Ao fim de cinco discos e muitos concertos, ainda se sente uma revelação?Há sempre pessoas que não nos conhecem e para as quais posso ser uma revelação.

E em termos de maturidade musical?Sinto que está a desenvolver-se cada vez mais. Não comecei a cantar há dois ou três anos, e isso cria alicerces na forma como se vê, se sente e se canta o fado. Apesar de ser bastante jovem, não me sinto bem com 24 anos. Talvez porque tenho sido sempre um pouco precoce [risos]. Talvez seja esta a minha forma de estar na vida.

Já realizou vários concertos em diversos locais do mundo. Qual é a reacção do público estrangeiro ao fado?Tem sido sempre extremamente calorosa, apesar de as pessoas, muitas vezes, não entenderem as palavras, embora faça um esforço por tentar explicar do que trata cada um dos fados. Na Suécia, por exemplo, este ano já estive duas vezes com a diferença de seis meses. E desde há dois anos estão a descobrir e a apaixonar-se pelo fado.

E que razões contribuem para que essa “paixão” sobreviva às diferenças linguísticas?É uma forma de expressão muito intensa. Obviamente que o amor ou a saudade são sentimentos que estão presentes em todo o mundo. A forma como nos expressamos, a sonoridade da guitarra portuguesa, fá-los apaixonarem-se e recordarem histórias das suas próprias vidas em culturas muito diferentes da nossa.E já soube de várias pessoas que aprenderam a falar português para ouvir fado.

Essa receptividade do público estrangeiro em relação ao fado relaciona-se de alguma forma com a difusão da chamada World Music?As pessoas estão cada vez mais a sentir a necessidade de não se deixarem globalizar, de conhecerem as tradições, seja do flamenco, do tango ou do fado. Isso obviamente tem sido muito importante para a divulgação do fado. Mas mesmo à parte dos festivais de World Music, a programação de muitas salas contempla cada vez mais o fado.O fado começa, agora, a passar para outros circuitos que não os da World Music, o que traduz o seu interesse crescente. Mas, de facto, começou pela World Music.

Na música «Sem querer» podemos ouvir: “Abandonei a tristeza/ Sem perceber que a beleza/ da alegria também chora”. Este excerto pode ser uma metáfora para a ideia de fado?Exactamente. Aliás, o Hélder Moutinho, que é de uma família de fadistas como o Camané ou o Pedro Moutinho, conseguiu explicitar a própria essência do fado nesse poema.

E a alegria também chora?Sim. Podemo-nos emocionar quando estamos alegres.

Brincando um pouco com outro dos fados que interpreta no seu mais recente disco, que flor gostaria que plantassem à varanda para lhe oferecer?Uma rosa.

E o que é que a Joana Amendoeira tem à flor da pele?Muitos sentimentos. Tenho a alma de fadista, o amor, a saudade, a vida. Pode-se resumir tudo a isso, à vida. O fado é isso mesmo.

Perfil: Joana Amendoeira nasceu em Santarém a 30 de Setembro de 1982. No entanto, desenganem-se os que pensam que estamos na presença de uma principiante. A fadista já gravou cinco discos e conta no seu curriculum com vários concertos realizados nos quatro cantos do mundo, onde se destaca a sua digressão de 23 dias no Japão. Depois do lançamento do álbum «Joana Amendoeira – Ao vivo em Lisboa», a fadista apresenta «À flor da pele», onde associa um ambiente marcadamente tradicional às palavras de jovens poetas portugueses. Com apenas 12 anos venceu o primeiro prémio de interpretação feminina na Grande Noite do fado, no Porto. O público português tem agora, novamente, a possibilidade de se deixar seduzir pela voz de Joana Amendoeira, e pelo seu olhar intenso.

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