sexta-feira, março 15, 2013

Reportagem «FIM-DE-SEMANA PERFEITO», na Revista UP, da TAP Portugal (Jan.2013).



Pedimos emprestada às noites de Lisboa a fadista Joana Amendoeira e levámo-la a caminhar pela revigorante Rota Vicentina. Entre falésias imponentes, ondas poderosas e alguma bicharada, encontrámos o rasto da maior diva do fado, Amália Rodrigues.


Sapatos são tema querido às mulheres, mas aqui o calçado é outro. Vejamos. Chegamos à noitinha à Zambujeira do Mar, na costa alentejana, para um fim de semana de caminhadas. Ainda mal atacámos a salada de lapas com que o restaurante O Sacas nos recebe, quando surge a pergunta: “Trouxeram as botas de caminhada?” De mapa da novíssima Rota Vicentina na mão, Marta Cabral, 37 anos, enérgica diretora executiva do projeto de desenvolvimento sustentado Casas Brancas, certifica-se de que está tudo a postos. A fadista Joana Amendoeira, 30 anos, confirma. E sem mais que nos detenha arrancamos para uma dourada e um linguado grelhados vindos do Porto de Pesca Artesanal, mesmo ali ao lado.


Peixe fresquíssimo todo o ano é apenas um dos privilégios reservados a quem troca Lisboa pela paz do sudoeste. Para gente mais agitada, o isolamento e a tranquilidade talvez fossem demais. Para Marta, nascida e criada na capital, é o paraíso. Mesmo no inverno. “Tenho filhos, família. Na pior das hipóteses, está a chover e ficamos em casa, junto à salamandra, a ouvir os passarinhos lá fora.”

As rotas pedonais são a grande aposta da Casas Brancas para dinamizar a região fora da loucura da época alta. Os 340 quilómetros de trilhos e caminhos já estão sinalizados. Associaram-se cerca de 100 empresas, de alojamentos a restaurantes. Falta consolidar o apoio da população local. Ou seja, pastores, taxistas, todos aqueles que possam cruzar-se com os caminhantes. “O Sacas, por exemplo, tem-nos ajudado imenso com a comunidade de pescadores”, explica Marta.
Na cozinha está a bem-disposta Ti Ana, 61 anos. No país gastrónomo já muitos ouviram falar dela, a cozinheira que sonha com os pratos. “Isto é uma cozinha simples”, avisa ao entrarmos. “E isto é só uma velha”, comenta ao ver a objetiva do fotógrafo apontada para ela. O bife de pampo é o seu maior orgulho. “Costumava aparecer na lota um peixe que pouca gente conhecia”, explica. “Eu pensava, ‘isto tem de ser muito bom porque é muito carnudo’. Uma vez deitei-me e decidi, ‘vou pensar num prato’. Acordei, tirei-lhe a pele, as espinhas, e fiz um bife.”
Assistem em silêncio a filha, Sílvia, de 37 anos, que a ajuda na cozinha, e o marido, o verdadeiro Sacas, responsável pela grelha. “Ele fica muito contente quando dizem que o peixe está bem feito”, traduz Ti Ana. O sorriso tímido do antigo pescador mantém-se à distância. Percebemos depois que aquela cozinha é perigosa. Primeiro chegam os fritos de batata-doce, depois os licores para empurrar. Menta, clementina, eucalipto, medronho. Tudo caseiro, tudo sonhado. Joana Amendoeira já não sabe como segurar o terceiro copo. Ti Ana prossegue: “Agora sonhei que tenho de fazer de ‘ortigas’.”

Vale do silêncio
Se acabou o liceu sem perceber bem o que é um oximoro, é só ir à Quinta do Chocalhinho, perto de Odemira. Por lá, de manhã cedo, o silêncio é realmente ensurdecedor – como o amor de Camões era um contentamento descontente. Talvez seja coisa de gente da cidade, habituada ao ruído de fundo. De véspera só tínhamos chegado a tempo de apreciar um céu de lua nova, cristalino catálogo astronómico. Agora, o dia rompe glorioso. Enquanto o ar fresco nos espicaça as vias respiratórias, olhamos à volta, vemos as oliveiras, os sobreiros, os burros lá em baixo, e congratulamo-nos: estamos no meio do nada.
Há quatro anos que Margarida e Luís Freitas abriram este acolhedor agroturismo. A propriedade pertencia ao avô de Luís e foi aqui que o juiz aposentado passou a infância. Depois de muitas voltas no mundo, dos Açores a Macau, decidiram reabilitar as casas pré-existentes com um toque do oriente e conforto contemporâneo.
A hospitalidade começa no abundante pequeno-almoço: pão alentejano, compotas caseiras, um requeijão divinal – di-vi-nal – da Queijaria do Mira, ovos biológicos e até pão-de-ló acabado de fazer. Em fundo, ouve-se fado e Joana Amendoeira vai identificando. Tem uma coleção de mais de mil CDs. Este é “Um Violino no Fado”, cantarola. “Olha, olha, uma surpresa. Puseram um dos meus discos.” Luís Freitas entra sorridente pela sala: “Como vê, já há muito tempo que tinha chegado à Quinta do Chocalhinho”.

Trilho dos pescadores
Se não nos tivessem dito que Rudolfo era suíço, talvez não acreditássemos. De rabo de cavalo grisalho e boné, o Presidente da Associação Casas Brancas, Rudolf Müller, 50 anos, e a mulher, Angélica, uma brasileira de 36, recebem-nos junto à capela da Zambujeira do Mar, de frente para umas ondas perfeitas. O plano é caminharmos para sul, pelos estreitos trilhos dos pescadores, mas antes vem a questão da praxe: “Só tens essas botas?”. O simpático guia aponta para as botas rasas de camurça e adverte Joana, “Não vão sobreviver à caminhada. Ali junto à casa da Amália está tudo cheio de lama.”
O refúgio da maior diva do fado português é a cenoura que acenámos à jovem fadista. Para ela, mais habituada às horas tardias do fado, tudo isto é novo: a Costa Alentejana e Vicentina, as caminhadas, o preciosismo em relação ao calçado. Ao passarmos pela praia dos Alteirinhos, Rudolfo comenta que “é uma das mais bonitas” – e onde vem pescar à linha. Maravilhamo-nos com as falésias e outras formações rochosas, o mar poderoso lá em baixo, a vegetação rasteira. A flor mais emblemática é a Armeria pungens, ou cravo-das-areias. Ao longe plana um falcão peregrino. Poucas horas depois, na Praia do Carvalhal, avistamos um peneireiro.
Já em quatro rodas, chegamos ao Brejão, destino de férias de Amália Rodrigues. Recebe-nos António Pacheco, da Casa da Seiceira. É neto de Augusta Maria, a mulher que vendeu a propriedade à fadista. “Ela viu aquilo e ficou logo encantada”, conta. Não conseguimos autorização para visitar a casa, mas contornámo-la. O caminho passa junto a um regato, está de facto cheio de lama e as botas de Joana não sobrevivem.
Vale a pena o sacrifício. Saímos de entre a vegetação e deparamo-nos com a mesma vista que Amália teria do jardim: esplêndida, sobre o mar. Joana recorda a sua diva. “A inteligência, a intuição, a coragem”, elogia. “Ainda consegui um autógrafo dela num livro de poesia: ‘Com um beijinho da Amália’. Não lhe consegui dizer nada.”

Só mais um esforço
Joana acorda no dia seguinte com as pernas doridas. Nem queremos imaginar o que teria sido sem a massagem de alongamento da Stress Free Zone ao final da tarde. Ainda assim, mantém o fair-play. Mesmo que, como comenta, para ajudar à recuperação lhe esteja reservado o dobro da distância da véspera. Entretanto, a conversa sobre calçado já se tornou uma piada. Antes da partida, a fadista mostra a Rudolfo os ténis brancos. Ele aprova mas não resiste: “Se não estiverem muito brancos no fim, peço desculpa.”
Partimos da Quinta do Chocalhinho e avançamos pelo caminho histórico. A parte interior da Rota Vicentina compensa em tranquilidade o dramatismo do trilho dos pescadores. Ao longo da Ribeira do Torgal, à sombra de choupos, carvalhos e freixos, dirigimo-nos para o Pego das Pias. Passamos por medronheiros, interrompemos a refeição a uma planta carnívora – uma Drosophyllum lusitanicum entretida com um gafanhoto –, cruzamo-nos com simpáticos porcos pretos e visitamos o senhor André da bicicleta, um ancião de 79 anos que agradece na despedida “hoje já vou ter um dia um bocadinho melhor”.
Depois do almoço junto à água, não apetece deixar o Pego. Que boa sesta que se dormia aqui. Só que ainda temos na agenda mais uma provação para a nossa fadista e fica a uns bons quilómetros de distância.
Apesar de ribatejana, Joana Amendoeira nunca andou a cavalo. Até tem algum receio. Se calhar não era para dizer. Ninguém resiste aos lusitanos da Quinta do Pessegueiro, em Porto Covo, e quando damos por isso já ela está em cima de um branco, o lindo Quasimodo – outro oximoro. “Se se sentir muito nervosa, cante. Eles adoram fado”, anima-a a dona da herdade, Cláudia Castanheira. Joana sorri, como sempre, respira fundo e confessa, “Já estou a transpirar”.
Regressamos sãos e salvos de um passeio de 45 minutos pela belíssima praia da Ilha do Pessegueiro. Num céu rosado, o sol põe-se sobre o mar. Joana volta a sorrir, mas de alívio. Está na hora de regressar ao habitat natural. A casa de fados Sr. Vinho, em Lisboa, espera por ela. Sem ténis, sem lama, sem trilhos nem cavalos à vista, esta noite volta a cantar o fado.

por Joana Stichini Vilela

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